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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Comentario sobre o texto do carnaval da Bahia 1986

A matéria sobre o carnaval da Bahia em 1986, eu entendo como o "divisor de água" da história do nosso carnaval. Foi a partir deste ano que se começou a pensarem em "organização".

O Carnaval da Bahia entra em nova dança

O CARNAVAL DA BAHIA ENTRA EM NOVA DANÇA
(MATINAS SUZUKI JR.)
                                                          Editor da ilustrada, de Salvador
Matéria publicada na folha de São Paulo – Quinta-feira, 13 de fevereiro de 1986 (na íntegra)
(tenho guardado o recorte do jornal)

A grande sensação do Carnaval de Salvador não foi nem o trio elétrico, como todos estão acostumados a pensar, nem os blocos africanos do tipo “Ilê Ayê” ou “Filhos de Ghandi”. A grande sensação foi duas danças bastante populares, criadas pelas classes mais baixas, chamadas de “Deboche” e “Ti-ti-ti”. São danças bastante sensuais, que certamente lembram o assombro que os primeiros portugueses – que escreveram sobre o Brasil de Salvador, no período colonial -, deviam sentir ao ver o maxixe ou lundu.

O “Deboche” já existe há algum tempo – desde o carnaval de 1984 -, e é uma maneira de dançar levantando os braços, jogando o traseiro para trás e requebrando muito. O responsável pelo grande sucesso do “Deboche é um cantor que faz enorme sucesso na Bahia, chamado Luis Caldas. Aqui dizem que ele já vendeu 120 mil cópias do seu disco, o que eu duvido muito, não existe mercado na Bahia para isto.

Povo na praça

Mas vamos ao povo que tomou conta da praça como já sentenciava Castro Alves e Caetano Veloso: é o mais careta possível. Violência igual, talvez nem na série “Miami Vice” que a TVS (que por sinal cobriu mediocramente o Carnaval da Bahia, em sua emissora local, a TV Itapuã), vai passar a partir do dia três de março. Mas voltando ao Carnaval que terminou depois das 7h de ontem, com a praça Castro Alves implorando para qualquer trio tocar mais, tem muita gente boa aqui. Vamos citar alguns nomes: Moraes Moreira, Antonio Risério, Patinhas-João Santana, letrista e ex-chefe da sucursal da “Veja” em Salvador e ex-chefe da sucursal do “Jornal do Brasil”, em Brasília, e que atualmente é secretário das Comunicações de Mário Kertz, o prefeito do PMDB eleito nas últimas eleições com cerca de 63% dos votos (e que já promoveu ontem uma reunião com o secretariado para reformular o Carnaval do próximo ano) e o secretário extraordinário, Roberto Pinho. Mais: Caetano Veloso e Gilberto Gil que também estão empenhados em dar um novo perfil para o Carnaval daqui, que todos julgam estar entrando num modelo saturado.

Não se trata de acabar com os trios elétricos mas de estabelecer uma nova organização para que os trios não prejudiquem o desfile dos blocos de afoxé, com um contingente enorme aqui em Salvador, e que não podem disputar os sons dos seus atabaques com as guitarras altamente amplificados dos trios elétricos. A tecnologia desenvolvida pelos trios elétricos é superior a muitos teatros do Rio e São Paulo: eles colocam quase seis cornetas de som em uma caixa minúscula.

Outro problema que os trios não estão se preparando para enfrentar: as dificuldades de infra-estrutura e de topografia de uma cidade à beira-mar. Não há caminhão que agüente subir algumas ladeiras, e eles não podem passar em determinados lugares pois sua escala é muito grande e a fiação da cidade, totalmente aérea, não permite a passagem em pontos que fazem parte do percurso principal do Carnaval baiano.




Empresas carnavalescas

Os trios elétricos realizam uma série de discursos antes de cada música (do tipo muito axé pra vocês, a noite está linda etc., que passa também pela promoção de artistas submergentes baianos). Não há trio que não pare em algum lugar para alugar a massa que só está a fim de beber, pular e transar, no bom sentido, com um comício do tipo: vamos cantar um sucesso do nosso último disco, ou estamos lançando esta música para o ano que vem etc. Os trios estão mais querendo fazer shows.

É impressionante a quantidade de músicas que eles tocam que não tem nada a ver com o Carnaval. Tudo isto está levando a uma espécie de questionamento do próprio sistema dos trios elétricos, que na maioria das vezes são mais para tocar para a massa extremamente empobrecida de Salvador, mas que viraram verdadeiras empresas, com mensalidades caríssimas durante todo o ano e que conseguem por na rua os trios que chegam a custar mais de um bilhão de cruzeiros. Estes blocos caem na rua cercados por uma corda de navio e protegidos por seguranças que impedem que eles se misturem com a massa na rua, ao mesmo tempo em que ocupam toda a avenida, impedindo a brincadeira das massas. Além disso, estes trios que também tocam para o bloco, param durante muito tempo para descansar e a praça Castro Alves, antiga arena da folia baiana, passa quase que 60% da noite sem o som de um único trio elétrico. Tudo isto está sendo questionado pelos setores mais conseqüentes da cultura baiana, que acham que um Carnaval tão espontâneo e tão inovador como o de Salvador não pode sucumbir no congelamento de formas estereotipadas por alguns blocos que já se tornaram empresas do Carnaval.

Polêmica

Se o turista chega aqui e quer saber quais os trios elétricos que vão desfilar à noite, quais os blocos de afoxés que sairão religiosamente no seu misto de Carnaval pagão e místico, quais os bailes de clubes, ou boates ou hotéis, ele não conseguirá jamais um guia para orientá-lo. Isto é um absurdo quando se pensa na quantidade de opções que o Carnaval baiano oferece.

Além do questionamento das formas atuais dos trios, por parte de pessoas que foram as principais responsáveis pela divulgação do frevo em guitarra elétrica desenvolvido na Bahia, existe já, explicitamente, nos temas de Carnaval uma polêmica entre os trios e os blocos de afoxés. Este ano os “Comanches” saíram na rua com uma música que criticava os trios e lembrava que eles eram o origem do Carnaval baiano. Moraes Moreira assistiu o desfile dos “Comanches” e embora reclamasse da agressividade do tema, não deixou de dar razão quanto ao fato do barulho elétrico, já altamente tecnológico dos trios, abafar o som dos afoxés.

Esta questão poderá ser resolvida no ano que vem, como querem os organizadores do Carnaval, criando uma espécie de geografia, quando um dia desfilarão pelas ruas centrais os afoxés, enquanto os trios percorrerem, por exemplo, as ruas da orla, e no outro invertendo. Os blocos de afoxé não podem ser desprezados. Eles são, talvez, a única manifestação de religiosidade profana no espaço de inversões que se chama Carnaval. Que os trios elétricos acabem com eles é uma demonstração de mercantilização da vida baiana. Há vários esquemas sendo pensados para salvar o Carnaval baiano que já não atrai a moçadinha avançada do Rio e São Paulo como nos anos setenta. Virou um grande salão violento com imensos corredores poloneses como já o definiram.

Quanto ao “Deboche” e “Ti-ti-ti”, é mesmo muito engraçado. A diferença é que no “Ti-ti-ti” as pessoas abaixam-se até o chão feito índio dançando em volta da fogueira como em filme americano. Há vários responsáveis pelas modas, como o citado Luis Caldas e uma tal de Sara Jane (duvido que ela faça sucesso longe da Chita). Existe também um ponto diferente da Bahia nestes dias de Carnaval. Só se toca música de ritmos afro-baianos com compositores locais e “reggae”. Afora isto, rola um papo muito sério de recuperação da vitalidade cultural de Salvador no centro velho e a candidatura de Gil para a Constituinte.